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Análise Técnica e Crítica da Transferência do Controle de Armas dos CACs do Exército Brasileiro para a Polícia Federal

Análise Técnica e Crítica da Transferência do Controle de Armas dos CACs do Exército Brasileiro para a Polícia Federal:
Desafios Operacionais, Jurídicos e Tecnológicos
A transição do controle, registro e fiscalização das atividades de Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs) do Exército Brasileiro para a Polícia Federal (PF), programada para 1º de julho de 2025, conforme o Decreto nº 11.615/2023 e o Acordo de Cooperação Técnica nº 9/2023, representa uma reestruturação significativa na política de controle de armas de fogo no Brasil.
Este artigo oferece uma análise técnica aprofundada, examinando as limitações operacionais do Exército, os desafios estruturais da PF, as implicações tecnológicas e jurídicas, e os impactos para os CACs e a segurança pública.
A abordagem destaca as fragilidades do processo e avalia se a transferência pode alcançar os objetivos de maior eficiência e rigor na fiscalização.
1. Contexto Técnico do Controle pelo Exército:
Estrutura e Limitações
O Exército Brasileiro, por meio da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), gerenciava as atividades dos CACs com base na Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) e no Decreto nº 9.847/2019, regulamentado por portarias como a COLOG nº 167/2024.
A estrutura operacional incluía:
Sistemas de Gestão:
Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma): Banco de dados para rastreamento de armas de CACs, com cerca de 1,3 milhão de registros até 2024.
Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC): Usado para autorizações de compra, transferência e guias de tráfego.
Sistema de Gestão Corporativo (SisGCorp): Plataforma para solicitações online, como emissões de Certificados de Registro (CR).
Estrutura Organizacional:
11º Regiões Militares (RMs) e 56 Serviços de Fiscalização de Produtos Controlados (SFPCs) distribuídos pelo país.
Aproximadamente 2.000 servidores, incluindo militares e civis, responsáveis por fiscalizar armas, explosivos, blindagens e clubes de tiro.
Processos:
Emissão de CR para CACs, com validade de até 10 anos.
Autorização de aquisição de armas e munições, guias de tráfego e fiscalização de entidades como clubes de tiro.
Verificação de aptidão psicológica e capacidade técnica, realizada por psicólogos e instrutores credenciados.
Limitações Identificadas:
Sobrecarga Operacional: O aumento exponencial de CACs, de cerca de 100 mil em 2018 para 900 mil em 2024, impulsionado por decretos que flexibilizaram o acesso a armas (e.g., Decreto nº 9.785/2019), sobrecarregou a capacidade de fiscalização.
O TCU, em auditoria de 2023, apontou que o Exército processava 400 mil solicitações anuais com recursos humanos insuficientes.
Falhas de Controle: Relatórios do TCU e da Controladoria-Geral da União (CGU) identificaram:
Emissão de CR para indivíduos com antecedentes criminais, incluindo homicídio, tráfico de drogas e organização criminosa.
Inconsistências no Sigma, como registros duplicados ou incompletos.
Fiscalização ineficaz de clubes de tiro, com 2.200 entidades registradas, muitas operando sem vistorias regulares.
Burocracia e Demora: O prazo médio para análise de solicitações, como aquisição de armas ou renovação de CR, superava 120 dias, contrariando o limite de 30 dias estipulado pelo Decreto nº 9.847/2019.
A falta de digitalização plena e a dependência de processos manuais contribuíam para os atrasos.
Descentralização Ineficiente: Apesar da capilaridade das RMs, a padronização dos procedimentos variava, gerando discrepâncias regionais na aplicação das normas.
Essas fragilidades motivaram a decisão do governo de transferir a competência para a PF, sob a justificativa de maior integração com sistemas de segurança pública e fortalecimento do controle de armas.
2. A Transição para a Polícia Federal: Estrutura Planejada e Desafios Técnicos
A PF assumirá a gestão dos CACs a partir de 1º de julho de 2025, integrando suas atividades ao Sistema Nacional de Armas (Sinarm), que já regula a posse e o porte de armas de civis e forças policiais.
O planejamento inclui:
Estrutura Organizacional:
Criação de 27 Delegacias de Controle de Armas e Produtos Químicos (DELEAQ) nas capitais e no Distrito Federal.
96 Núcleos de Controle de Armas e Produtos Químicos (NUCAQs) em delegacias regionais, totalizando 123 unidades.
Coordenação central pela Diretoria de Controle de Armas, Explosivos e Produtos Químicos (DCAEPQ), vinculada ao MJSP.
Sistemas Tecnológicos:
Integração do Sigma ao Sinarm, com migração de 1,3 milhão de registros de armas e 900 mil CRs.
Desenvolvimento de uma nova plataforma digital para solicitações de CRPF, autorizações de compra e guias de tráfego.
Desativação do SisGCorp para novas solicitações em 27 de junho de 2025.
Processos:
Emissão do Certificado de Registro de Pessoa Física (CRPF), com validade de 3 anos para CACs e 5 anos para posse de armas comuns.
Fiscalização de clubes de tiro, comércios de armas e atividades de CACs, incluindo vistorias presenciais e análise documental.
Revisão (“pente-fino”) dos registros existentes, com foco em identificar irregularidades.
Desafios Técnicos:
Capacitação e Recursos Humanos:
Até outubro de 2024, apenas 600 servidores da PF haviam sido capacitados para operar os sistemas do Exército, e somente 200 receberam treinamento específico para fiscalização de CACs.
O plano prevê mais 1.200 agentes treinados até julho de 2025, mas a meta é considerada insuficiente.
A PF solicitou 2.260 novos cargos, incluindo delegados, agentes, psicólogos e administrativos, mas o governo autorizou apenas 579 contratações temporárias, ainda pendentes de implementação. O uso de terceirizados para atividades sensíveis, como análise de dados de armamentos, levanta preocupações sobre confidencialidade e segurança.
A PF opera com um déficit de 4.000 servidores em suas atribuições atuais (e.g., combate ao crime organizado, controle de fronteiras), o que limita sua capacidade de absorver novas demandas.
Infraestrutura Física:
A implementação das DELEAQs e NUCAQs está atrasada. Apenas 10 das 27 delegacias especializadas estavam em fase de estruturação até dezembro de 2024, com carência de equipamentos, como computadores e scanners biométricos.
Em regiões sem unidades especializadas, as delegacias regionais acumularão a fiscalização de CACs, sobrecarregando estruturas já saturadas.
Migração Tecnológica:
A integração do Sigma ao Sinarm enfrenta desafios técnicos, como a compatibilização de formatos de dados e a garantia de integridade dos registros.
Testes preliminares em 2024 identificaram erros em 5% dos registros migrados, exigindo validação manual.
A nova plataforma da PF para solicitações online ainda não foi plenamente desenvolvida, e sua escalabilidade para processar até 500 mil solicitações anuais é incerta.
A desativação do SisGCorp pode gerar um “apagão” temporário, caso a PF não consiga absorver as demandas pendentes até julho de 2025.
Orçamento:
O MJSP destinou R$ 20 milhões para a transição, mas o custo estimado para estruturar as DELEAQs, contratar pessoal e desenvolver sistemas é de R$ 150 milhões anuais, segundo a própria PF.
A ausência de suplementação orçamentária compromete a execução do plano.
Demanda Reprimida:
O Exército deixará um passivo de aproximadamente 200 mil solicitações pendentes, incluindo renovações de CR, autorizações de compra e guias de tráfego. A PF, com menor capacidade operacional inicial, pode enfrentar atrasos superiores a 180 dias, agravando a insatisfação dos CACs.
3. Implicações Jurídicas
A transferência é amparada pelo Decreto nº 11.615/2023, que altera o Decreto nº 9.847/2019, mas enfrenta controvérsias legais:
Conflito com o Estatuto do Desarmamento: A Lei nº 10.826/2003 atribui ao Exército a fiscalização de produtos controlados, incluindo armas de CACs.
A transferência via decreto, sem alteração legislativa pelo Congresso, é questionada por juristas como potencialmente inconstitucional.
A Confederação Brasileira de Tiro Prático (CBTP) avalia ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF).
Insegurança Jurídica:
A falta de clareza sobre a validade de CRs emitidos pelo Exército após 1º de julho de 2025 e os critérios para renovação do CRPF pode gerar litígios.
CACs temem que a PF adote interpretações mais restritivas, limitando direitos adquiridos.
Normatização:
A PF ainda não publicou portarias detalhando os procedimentos para emissão de CRPF, autorizações e fiscalizações, o que aumenta a incerteza operacional.
4. Impactos para os CACsA transição afeta diretamente os 900 mil CACs registrados, com implicações práticas e financeiras:
Certificados de Registro:
O CRPF terá validade reduzida (3 anos para CACs, contra até 10 anos no Exército), exigindo renovações frequentes. O custo estimado por renovação é de R$ 500 a R$ 1.000, incluindo taxas administrativas e laudos psicológicos/técnicos.
A PF planeja revisar todos os CRs existentes, o que pode levar à cassação de registros irregulares, mas também à paralisia administrativa devido ao volume.
Autorizações e Fiscalização:
Solicitações de compra de armas e munições, transferências e guias de tráfego serão processadas pela PF, com risco de atrasos devido à falta de estrutura.
A fiscalização de clubes de tiro será intensificada, com exigências de relatórios mensais e vistorias presenciais. Clubes que não se adequarem podem ser interditados, impactando o treinamento de atiradores desportivos.
Impactos no Tiro Esportivo:
Atiradores de competições nacionais e internacionais temem que a burocracia comprometa o acesso a munições e equipamentos, prejudicando o desempenho em eventos como os Jogos Olímpicos de 2028.
A CBTP relatou que 30% dos clubes de tiro enfrentam dificuldades para renovar licenças, o que pode reduzir a oferta de instalações.
Custos Adicionais:
A necessidade de novos laudos psicológicos e técnicos a cada 3 anos, somada às taxas da PF, pode elevar o custo anual para CACs em até 50%, segundo estimativas da Associação Nacional de Armas e Munições (ANAM).
5. Implicações para a Segurança Pública
O governo defende que a transferência fortalecerá o controle de armas, reduzindo o risco de desvio para o crime organizado. Contudo, os desafios técnicos podem gerar efeitos contrários:
Risco de Desvio:
A falta de fiscalização eficaz durante a transição pode facilitar o desvio de armas legais para o mercado ilícito. Um estudo do Instituto Sou da Paz (2024) apontou que 15% das armas apreendidas com criminosos entre 2020 e 2023 tinham origem em registros de CACs.
Monitoramento Ineficiente: A ausência de uma plataforma digital robusta na PF pode comprometer a rastreabilidade de armas, especialmente em regiões de alta criminalidade.
Pente-Fino: A revisão dos 1,3 milhão de registros é essencial para identificar irregularidades, mas sua execução lenta pode manter armas em mãos inadequadas por anos.
6. Análise Crítica: Um Sistema em Risco de Colapso?
A transferência do controle de armas dos CACs para a PF é uma tentativa de corrigir as fragilidades do Exército, mas os desafios técnicos, orçamentários e jurídicos sugerem um alto risco de fracasso operacional.
A PF, apesar de sua expertise em segurança pública, não possui a estrutura necessária para absorver uma demanda de tal magnitude.
Comparada ao Exército, que contava com uma rede descentralizada e sistemas consolidados (ainda que imperfeitos), a PF enfrenta:
Menor Capacidade Operacional: Com menos servidores e unidades especializadas, a PF terá dificuldade em processar o volume de solicitações e fiscalizações.
Riscos Tecnológicos:
A migração incompleta de dados e a falta de uma plataforma escalável podem gerar falhas sistêmicas.
Burocratização Excessiva: A redução da validade do CRPF e a exigência de renovações frequentes aumentarão a carga administrativa, tanto para a PF quanto para os CACs.
Insegurança Jurídica:
A ausência de uma base legal sólida pode paralisar o processo, caso haja judicialização.
A transição reflete uma decisão política alinhada à agenda de desarmamento, mas carece de planejamento técnico robusto. Sem investimentos significativos em pessoal, infraestrutura e tecnologia, o controle de armas pode se tornar ainda mais vulnerável, comprometendo a segurança pública e os direitos dos CACs.
7. Recomendações Técnicas
Para mitigar os riscos, sugere-se:
Investimento Imediato:
Alocação de R$ 150 milhões anuais para estruturar as DELEAQs, contratar servidores e desenvolver sistemas.
Criação de um fundo emergencial para a transição, financiado por taxas de registro e renovações.
Capacitação Intensiva:
Treinamento de pelo menos 2.000 servidores até julho de 2025, com foco em fiscalização de CACs e operação do Sinarm.
Parcerias com o Exército para transferência de know-how durante os primeiros dois anos.
Fortalecimento Tecnológico:
Conclusão da migração do Sigma ao Sinarm até março de 2025, com validação de 100% dos registros.
Desenvolvimento de uma plataforma digital com capacidade para 1 milhão de acessos mensais, integrada ao gov.br.
Reforma Legislativa:
Envio de projeto de lei ao Congresso para atualizar o Estatuto do Desarmamento, legitimando a competência da PF.
Publicação de portarias detalhando os procedimentos da PF até janeiro de 2025.
Plano de Contingência:
Manutenção do Exército como apoio à PF até 2027, processando solicitações pendentes e fiscalizações em regiões sem DELEAQs.
Criação de um canal de atendimento dedicado aos CACs, com call center e suporte online.
8. Conclusão
A transferência do controle de armas dos CACs do Exército para a Polícia Federal é um projeto ambicioso, mas tecnicamente frágil.
As limitações do Exército, como sobrecarga operacional e falhas de fiscalização, justificam a busca por uma alternativa, mas a PF, com recursos insuficientes e infraestrutura incipiente, enfrenta o risco de agravar os problemas existentes. Atrasos, burocracia excessiva e vulnerabilidades tecnológicas podem comprometer o controle de 1,3 milhão de armas, com impactos diretos na segurança pública e nas atividades dos CACs.
A execução bem-sucedida da transição exige investimentos robustos, planejamento técnico detalhado e respaldo jurídico claro. Sem essas condições, o Brasil pode enfrentar um retrocesso no controle de armas, com consequências graves para todos os envolvidos.
Fontes:
Agência Gov, 15/05/2025CNN Brasil, 16/05/2025Legalmente Armado, 17/05/2025O Globo, 27/12/2024Estadão, 16/05/2025Jornal Opção, 16/05/2025Instituto Sou da Paz, Relatório 2024TCU, Acórdão nº 1.234/2023Posts no X, 23/06/2025
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